19/05/20
Por causa de brigas deflagradas pelo presidente Jair Bolsonaro, o Brasil sequer foi convidado para lançar iniciativa global que reúne países como França e Alemanha
O Brasil corre o risco de ficar no fim da fila para receber vacina contra a Covid-19 por uma iniciativa internacional visando acelerar a produção de vacina, tratamentos e testes contra a pandemia e assegurar um acesso equitativo.
Por causa de brigas deflagradas pelo presidente Jair Bolsonaro, o Brasil sequer foi convidado para lançar a “Colaboração Global para Acelerar o Desenvolvimento, Produção e Acesso Equitativo a diagnósticos, tratamento e vacina contra a Covid-19”, no fim de abril, reunindo países como França e Alemanha, organizações internacionais, fundações e empresas privadas.
Enquanto vários governos prometiam juntar forças contra o vírus, que já matou milhares de pessoas, Bolsonaro acusava a Organização Mundial de Saúde – OMS de incentivar masturbação de crianças, por exemplo.
No contexto dessa chamada “Act Accelerator”, a União Europeia conseguiu no espaço de algumas horas a promessa coletiva de 7,4 bilhões de euros para financiar desenvolvimento da vacina e outros instrumentos contra a pandemia, recentemente.
Agora, setores no Brasil na área de ciência e tecnologia se movimentam para convencer o governo a participar na ação global. Primeiro porque, apesar do discurso de acesso equitativo da iniciativa, o risco é de o país, se ficar fora do “’Act Accelerator”’, não ser prioritário para receber a vacina, não poder influenciar na questão de preços e enfrentar condições inferiores.
Por outro lado, se integrar a iniciativa global, o Brasil abre também oportunidade para a Fiocruz e indústria brasileira fazerem alguma etapa do processo produtivo. Será necessário um volume tão gigantesco de vacinas, que vai se precisar de muitas fábricas em torno do mundo para produzir.
A participação na iniciativa global é voluntária e a oportunidade para entrar continua aberta. Esse é o caso também de um movimento convergente que será lançada no fim do mês, a chamada “’Call to Action”. Trata-se de uma plataforma proposta pela Costa Rica para facilitar o acesso e uso de dados, conhecimento e propriedade intelectual de tecnologia para detectar, prevenir, controlar e tratar a pandemia.
Com a imagem bastante deteriorada, o Brasil é visto com espanto no exterior e ainda mais agora, com demissões de dois ministros da Saúde em um mês em plena pandemia, provocando questionamentos sobre o custo humano de orientações contraditórias.
Tampouco contribuiu a tensão que o Itamaraty construiu com a China nas últimas semanas, com o chanceler Ernesto Araújo insistindo sobre o risco do comunismo em diferentes eventos públicos ou privados. O resultado: dificuldades para ter acesso aos produtos de Pequim para lidar com a crise, como respiradores ou máscaras.
Nesta segunda e terça-feira ocorre a Assembleia Mundial da Saúde, que será virtual. O Brasil será representado pelo general Eduardo Pazuello, no cargo de ministro interino. Ele terá dois minutos para dar a mensagem brasileira.
Na assembleia, está prevista a aprovação de uma resolução da União Europeia, da qual o Brasil é um dos co-patrocinadores. Defende o acesso equitativo e a preço razoável para medicamentos e vacina contra a pandemia. E prevê uma investigação independente, na primeira oportunidade possível, sobre a atuação da OMS na reação à pandemia. Esta é uma exigência dos EUA, que querem com isso atacar a China e também o diretor-geral da organização, Tedros Adhanom.
Os Estados Unidos não deverão romper o consenso sobre a resolução. Mas podem se dissociar de alguns parágrafos. Um, sobre educação sexual e reprodutiva; e outro, sobre flexibilidades para quebrar patente previstas no Acordo de Trips da Organização Mundial do Comércio – OMC.
Já a China, embora um alvo indireto, não vai querer assumir o preço político de aparecer como atrapalhando uma resolução que fala de facilitar acesso a medicamentos contra a pandemia.
Críticas a quem ignorou o vírus – Durante o evento de hoje, mensagens veladas ao Brasil foram lançadas. Secretário-geral da ONU, Antônio Guterres, criticou governos que “ignoraram” alertas sobre a gravidade da pandemia e apontou que a economia só vai se recuperar quando vírus for vencido.
Guterres não citou nomes de países. Mas, desde a semana passada, o Brasil passou a estar no centro das atenções internacionais diante do número elevado de casos e mortes, além de uma sensação de desgoverno diante da mudança de ministros e a falta de uma estratégia.
O temor entre os técnicos é de que, sem um controle no Brasil, toda a América do Sul pode estar ameaçada. “Países diferentes têm seguido estratégias diferentes, às vezes contraditórias, e todos nós estamos pagando um preço pesado”, alertou Guterres.
“Muitos países têm ignorado as recomendações da Organização Mundial da Saúde. Como resultado, o vírus se espalhou pelo mundo e agora está se deslocando para o Sul global, onde seu impacto pode ser ainda mais devastador, e nós estamos arriscando mais picos e ondas”, indicou.
Chamando a crise de “maior desafio da nossa era”, Guterres apontou que a pandemia tem demonstrado “nossa fragilidade global”. “Apesar dos enormes avanços científicos e tecnológicos das últimas décadas, um vírus microscópico nos colocou de joelhos”, disse.
“Ainda não sabemos como erradicar, tratar ou vacinar contra a Covid-19. Não sabemos quando conseguiremos fazer essas coisas”, admitiu.
Humildade – Tedros Ghebreyesus, diretor-geral da OMS, pediu “humildade” por parte de líderes diante da pandemia. Segundo ele, todos querem reabrir suas economias. Mas, para que a recuperação seja real, tais relaxamentos precisam ser cautelosos.
“O vírus é fatal e rápido. Atua no escuro e se move como fogo. Precisamos tratar o vírus com respeito e atenção que ele merece”, defendeu. “Aqueles governos que se movem de forma precipitada correm o risco de minar a recuperação”, alertou.
“Temos um caminho longo a percorrer”, insistiu. Tedros ainda pediu que a ciência seja valorizada. “Quando mundo supera a ideologia, tudo é possível”, disse.
Para ele, os governos que tiveram êxito foram aqueles que adotaram um pacote de medidas, e não apenas isolamento social ou testes. “Não há uma bala de prata ou solução simples. Vai precisa de muito trabalho, fidelidade à ciência”, defendeu.
Já Guterres também deixou claro que governos não podem escolher entre salvar a economia e salvar vidas. “Apelamos para políticas para enfrentar as dimensões sociais e econômicas devastadoras da crise”, defendeu. Mas fez seu alerta. “Deixe-me ser claro: não há escolha entre lidar com o impacto na saúde e as consequências econômicas e sociais desta pandemia. Esta é uma falsa dicotomia. A menos que controlemos a propagação do vírus, a economia jamais se recuperará”, apontou.
Fonte: Com Valor Econômico e Coluna Jamil Chade